quinta-feira, 4 de abril de 2019

MOEDAS


Somente a você eu posso dizer que me desvencilhei de toda angústia porque o tempo é uma sombra agarrada aos meus pés e, onde quer que eu vá, não irei só. Eu continuo andando rumo à nascente do rio e as moedas que encontro ao acaso, serão colocadas na sua boca, como pagamento pela sua travessia. Tenho certeza de que os canhões que cospem maledicências  tentam encobrir  o céu azul e fazer dormir o amor estrangeiro. Eis que na modorra da tarde Abelardo caminha com passos lentos, traz debaixo do braço, o pacote de pães que comprou para sua tia. As ruas estão desertas apenas o burburinho no interior dos botecos e casas, revela a presença de vida. O velho casarão tem sua arquitetura iluminada pelos últimos raios de sol, Abelardo sabe que o tempo é como um grande arquiteto  na construção da abóbada celeste, nisso os longos dias se repetem e como um arauto que tem consciência, ele cospe nas mãos esfregando-as a seguir e, aperta o pacote sob o braço sentindo a quentura dos pães. Nas vitrines, os manequins esquálidos com seus olhos de plástico, dormem o sono de grandeza nos sonhos de Abelardo.  As surpresas são os carimbos, a tia, os pães, as ruas, as calçadas, o céu azulecente, a piada sem graça, as frases feitas, o carro, o homem que não cresce, as mentiras, o pão embolorado, a boca sem dentes, a cama de campanha, a galinha guisada, o cigarro, a tosse, os pés e o chão em comoção e tardia espera de um amanhã que não vai exister. Abelardo senta-se na guia da calçada, abre o pacote de pães e afasta os pensamentos enquanto abocanha o pão ainda morno.



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