-Vicentino!!! Suma com esse bicho nojento!
- Dona Pilar, eli é tão bunitinho. Tadin, caiu du nínhu í pra mórdi eli num morrê dí fome, eu truxí eli. Vô dá um banhu nêli, vo dá dí cume í arrumá um caxótinho pra eli drumi lá nu quartinhu, mais eu.
-Você é quem sabe. Mas esse bicho come carniça, e eu não o quero aqui dentro de casa.
- Comi não, Dona Pilar. Vo insiná eli a cume só coisa limpa, a senhora vai vê. Posso ficá quêli?!
- Se você se responsabilizar por ele, sim, pode ficar, mas não o quero aqui dentro.
O filhote de urubu recebeu banho com sabão de coco, foi enxugado com toalha e devidamente acomodado num “caxótinho” para tomar sol, enquanto Vicentino preparava uma “pápa” de carne crua amassada com fubá bem fininho para alimentá-lo. O filhote recebeu o nome de Neco. Cresceu forte e saudável entre as galinhas, galos, patos e perus que circulavam no galinheiro, mas que não tinham a liberdade de voar. Neco acabou por conquistar a todos, desde o meu avô até a Nena, que antes sentia náuseas quando via o filhote sendo alimentado. Vicentino ganhou um companheiro inseparável para suas horas de vadiagem pelo pasto ou para horas de soneca escondido entre as sacas de café.
Ele se deitava e o Neco ia chegando com seu andar meio “bamboleante” e se acomodava esperando por um cafuné – era comum vê-los dormindo lado a lado enquanto o sol estava a pino!
Quando chegava a hora do almoço, Neco acordava de seus devaneios, abria as asas, dava uma boa espichada no pescoço parecendo “farejar” o cheiro da carne fresca sendo fatiada na pia da cozinha. Parecia sorrir quando saia aos pulos até tomar impulso e levantar voo indo direto pousar no jirau junto da janela, onde Nena [antigamente] colocava as panelas de ferro depois de areadas. Ficava ali, emitindo sons roucos para chamar a atenção e ganhar uns pedaços de carne fresca. Ficava horas olhando pela janela e depois de receber seu manjar fresco, aproveitava para alisar as penas ou simplesmente enfiava a cabeça embaixo de uma das asas e dormia.
Já o Vicentino com aquela cara de “fuínha”, esgueirava pela cozinha ou despensa furtando pedaços gigantescos de bolo de fubá, marmelada, queijo, biscoitos de polvilho, linguiças defumadas e tudo que pudesse servir de alimento e quando alguém reclamava, ele sabiamente dizia que era o Neco que havia assaltado a despensa. Parecia ter uma fome interminável e um baú cheio de desculpas esfarrapadas. Uma ocasião meu avô recebeu a visita de um amigo médico, Dr. Messias – bonachão e muito falante e depois de uma longa conversa no gabinete, prontificou-se a consultar todos os empregados.
Quando soube da novidade, Vicentino, que estava “quentando as mão” perto do fogão à lenha, foi saindo de mansinho com medo das supostas injeções e o Neco que não era bobo nem nada, foi junto.
Ao sentir a falta dele, meu avô pediu para Nena chamar o fujão. Foi inútil. Ele só voltou na tarde do dia seguinte após certificar-se que o “Dotô” havia partido. E voltou com muita dor na barriga,
depois de comer tanto milho cozido e assado no braseiro. Choramingando pediu um chá, e segundo o diagnóstico de Nena –“Eli tá impaxado! Vicentino tá qui é só gáis.Tem que tomá purgante!” – Mas o Vicentino era totalmente contra qualquer coisa chamada remédio, recusou o purgante.
Meu avô então, pegou o famoso vidro de “purgante”, ficou olhando e dirigiu-se á despensa. Quando voltou, nos avisou que não deveríamos comer o doce de leite que estava na gamela. Era um presente para o Vicentino. Ninguém entendeu, mas obedecemos enquanto meu avô saia dando gargalhadas. No outro dia, Nena preparava o café e sentiu falta de alguns petiscos de sua despensa. Havia sumido duas linguiças, metade de um queijo e o doce de leite com gamela e tudo. Perguntou a ele se havia pego, ele negou dizendo: -“Deve dí tê sido o Neco. Dí noite ele tava sem sono e cum muita fome. Acho quí cumeu tudo sozinhu. Êita bicho guloso, sô!”
Meu avô deu uma sonora gargalhada e disse: -“Humm... Sei!”
Não demorou muito e o Vicentino foi ficando meio amarelo e suando muito, até que não aguentando mais saiu correndo se trancando no banheiro. Ficou horas neste vai e vem enquanto meu avô dava gargalhadas e conversava com o Neco, que tranquilamente comia o seu dejejum de carne fresca e olhava virando a cabeça para o lado parecendo rir da situação. E como dizia meu avô: “Tem gente que tem o olho maior que o estomago.”
Mas no final tudo se resolveu da melhor maneira possível e Neco e Vicentino ainda aprontaram muitas lá na fazenda...