domingo, 27 de dezembro de 2020

ENQUANTO ISSO... NO SERTÃO


 

Sob o sol causticante o menino observa o horizonte...

Fiz isso por vários dias. Esperou ansiosamente a chegada dele - o Papai Noel. Uma espera silenciosa e dolorida que lhe corrói a alma e faz latejar o estomago. Uma lágrima furtiva insisti em escorrer no rosto queimado pelo sol. O menino não entende – fez tudo certo. Enviou a carta explicando tudo. Prometeu aos irmãos menores que neste Natal, ganhariam presentes. Disse à mãe, que ela teria seu vestido novo – de chita florida, e uma fita vermelha, para por nos cabelos. Disse também, que teriam sobre a mesa tosca, uma ceia farta. Teriam arroz, farinha, feijão de corda, carne de sol, rapadura e todas aquelas coisas gostosas que ele viu numa revista velha que encontrou nos guardados do pai, antes dele desaparecer de vez, no mundo. O menino não esqueceu de pedir um osso bem recheado de tutano, para alimentar a cadela Floripes – nem dos bodes ele esqueceu. Pediu um saco cheinho de milho e até podia ver a alegria dos bichos mastigando os grãos, sem a preocupação dos espinhos. Mas foi um sonho vão. Papai Noel não lê cartinhas escritas em papel pardo todo manchado de gordura, e com letras tortas feitas com carvão. Ele deve ler as cartas bem escritas, enviadas por meninos de rostos corados e de barriga cheia, que não sabem a tristeza daqueles que não podem sonhar. E pensando assim, olhou mais uma vez a linha do horizonte tingida do sangue de mais um dia. Sentiu um amargo na garganta, e, em silêncio, desce da grande árvore na Caatinga. Deixa os sonhos para trás. Caminhando cabisbaixo, toma a direção da pequena casa de taipa. Quinze dias se passaram desde enviou a carta e  marcou o encontro com Papai Noel, e agora, era preciso dizer para os irmãos menores que não teriam os presentes – cavalinhos de madeira, pião com ponteira de ferro, a boneca que chora e o vestido de chita florida pra enfeitar a 'magrura' angelical da mãe. Sentiu o vento quente e deixou as lágrimas correm livres pelo rostinho sofrido. Correu com o vento sem se importar com os espinhos e pedras que feriam seus pés. Nada lhe doía mais que o sentimento de inexistência. Chegou ao barraco de taipa, e jogou-se num canto, em silêncio. Escondido feito um animal, ferido e calado adormeceu.

Blin, blin, tlin, tlin, dlin, dlin, dlin, tlin, blin...


 "Rodolfo, Corredora, Dançarina, Empinadora, Raposa, Cometa, Cupido, Trovão, Relâmpago, desçam. Desçam... Chegamos meninas, chegamos."

Ao escutar a voz de comando, as renas descem suavemente na Caatinga, levando o imenso trenó vermelho até a pequena casinha rebocada de barro e cinza. O silêncio é cortado apenas pelo canto das aves noturnas e do tilintar dos sinos, presos aos arreios no pescoço das renas. O menino desperta de seus sonhos ouvindo as batidinhas suaves na porta - "Raimundo, acorda!"- a voz suave chama por ele. Sonolento, o menino olha pelas frestas da parede e consegue ver o imenso trenó brilhando sob a luz da lua. Assustado, ouve o resfolegar das renas e o som dos cascos raspando o solo árido. Novamente alguém chama seu nome: - "Raimundo, abre a porta! Venha criança, venha... É Papai Noel"... A saia rodada do "vestido de chita" balança pra lá e pra cá enquanto ela - a mãe, traz guloseimas para a ceia de Natal... Noel, Sentado num banco de madeira lavada, segura no colo o menino menor, e conta histórias deixando os outros de olhos arregalados. Num canto, a cadela Floripes, rói o seu enorme e suculento osso, enquanto os bodes e cabras, se deliciam com o milho amarelinho... As renas observam tudo, levantando o focinho para sentir os cheiros da Caatinga.. Noel fala sobre o verdadeiro Espírito do Natal, fala sobre o Cristo Vivo e como Ele veio ao mundo. Também se desculpa pela demora em atender ao tão singelo pedido, descrito na cartinha de Raimundo, que não pediu nada para si, a não ser a felicidade dos irmãos e da mãe. Depois da Ceia, Noel com os olhos rasos d'água, se despede abraçando demoradamente Raimundo e deposita em suas mãos uma estrela flamejante. Um sinal de amor entre o Espírito do Natal e todo aquele que mantém o coração puro qual coração de uma criança.



terça-feira, 22 de dezembro de 2020

CARTA PARA O PAPAI NOEL

 



Com o mapa nas mãos, Noel sobrevoa a Caatinga buscando o local indicado e devidamente marcado com um X, feito com carvão. O mapa desenhado num pedaço de papel de embrulho, tem um dos cantos “mastigado” e apresenta marcas de dedos sujos, mostra claramente onde devem ser depositados os presentes – a árvore de Natal! Noel, pega novamente a carta. Olha demoradamente enquanto coça a longa barba branca. Tenta entender o motivo daquele pedido inusitado. Acostumado a viajar o mundo em seu trenó, sempre levando todo tipo de brinquedos – bolas, bonecas, carrinhos, trenzinhos, aviões – mas desta vez, a carta traz um pedido diferente. Respira fundo, coça a barba e pensa se a cartinha não podia ser apenas uma brincadeira de algum desocupado, mas, sendo ele o Papai Noel, não pode deixar de atender um pedido como aquele. E sobrevoando aquela terra árida com o treno carregado com os presentes,  de vez em quando, um pouco apreensivo tentava acalmar as renas... “Vamos, meninas, já esta estamos chegando” e chama carinhosamente cada uma delas pelo nome: “Dasher, Dancer, Prancer, Vixen, Comet, Cupid, Donder e Blitzen, em frente!” Com um "solavanco" no trenó, ajeita a carga tendo o cuidado de olhar se tudo continua no lugar. Não pode perder nada, principalmente ali, no meio daquela “secura” desertificada. Se perder algum dos presentes, não tem como arrumar outro, pois 95% da carga fora “comprada”, e,  não confeccionada pelos elfos na sua fabrica no Pólo Norte. Uma lufada de ar quente e seco traz até o seu nariz, o cheiro do bolo de nozes, presente da senhora Noel, que se comoveu ao ler a cartinha. O restante da carga de presentes – carne de sol, farinha, manteiga de garrafa, rapadura e outros itens que foram devidamente descritos nos seus detalhes – iogurte, bolacha recheada, arroz, feijão, doce de leite, café, goiabada, um vestido de chita florida e um metro de fita de cetim vermelha e muitos outros itens. Além disso, trazia também uma nota à parte, pedindo: sal grosso, farelo, alfafa e um osso bem gordo e ração para cachorro e um lembrete. ps: NÃO ESQUECE, É IMPORTANTE! De repente, uma árvore se destaca no meio da planície seca. Noel observa o relevo e identifica como sendo o ponto de entrega. Faz um gesto com os arreios e diz: Desçam meninas, desçam... E as renas conduzem o trenó com suavidade aterrizando na Caatinga entre cactos espinhentos e galhos secos. Noel salta do trenó e caminha até a árvore, e encontra um bilhete preso no tronco seco. “Papai Noel, eu quiria qui o sr. trais pra nóis um poco de comida porque aqui, a fome mata um mininu tudu dia. Não queria qui meus irmãozinho morreçe de fome, então eu pedi a cumida e os brinquedo e carrinho que é pra eu dá pro Cirço, porque ele só tem um ano e pode brinca di carrinho. Nóis já num pode. Trabaiamô na carvoaria... Papai Noel, nem me esqueçi da cumida do Branco o meu cachorro e nem da cumida das cabritas purque elas tem qui dá leite. O vestido de chita e  fita vermêia, era pra minha mãe por nos cabelo e quem sabe ela ia fica feliz de novo e parar de chorá, num é? Mas eu isperei, isperei e o sinhor não veio. Será qui a carta num chegô...

Um abraço e a sua 'bença' Papai Noel. Assinado: raimundo da silva".


Noel, enxuga as lágrimas e diz aos elfos que voltem para o trenó...


imagem: Árido

Aquarela sobre papel Canson

Luciah Lopez

sábado, 19 de dezembro de 2020

POESIA DE AMOR


 


...O vento me fala do tempo futuro

das cores de um por do sol

das gotas de tinta escorridas numa tela que só eu sei pintar.

O vento afaga os meus cabelos vermelhos

tintos do suor das uvas que insistem em amadurecer agora

quando as portas da catedral ainda não se abriram...

O vento traz um perfume que eu não conheço

um perfume diferente do sândalo e da erva doce

com os quais lavei as minhas palavras

deixando-as secar sol para depois escrever as rima dos versos

que brotam como gemas preciosas...

Sopra vento... Traga-me o pó dos pergaminhos

o sangue da terra

o breu e a magenta florescida no coração que pulsa

no grito daquelas que controlam as horas em rocas de madrepérola...

Traga-me o futuro e o passado engastado num anel de tempo

pedra de fogo

luz dos meus olhos perdida nos seus olhos...

Antítese de um sonho preso num relicário.

Silencio!

O tempo agora dorme

enrodilhado feito um gato, no desvão de um olhar que não se abriu.


imagem: Amor Perfeito

Aquarela sobre papel Canson

Luciah Lopez


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

RODA D'ÁGUA



Do fogão à lenha, vinham os chiados e estalidos da madeira meio verde, sendo consumida pelo fogo na pressa do fogo e na mansidão de cozer o leite e assar o pão. O arrastar dos chinelos de couro e no vai e vem do avental branco pela cozinha, um ramo de salsa cai distraidamente ao chão. E na chapa quente, o tostar do queijo faz dual com o café forte, escorrendo do coador de pano [tão escuro de tantos banhos]. O crepitar da lenha faz voar os vaga-lumes ardentes, e, entre dentes, um sorriso de satisfação. No olhar calmo de carinhos plenos, se vê brilhando, o alumínio das panelas. Do fio da faca, caem as cascas das frutas e nascem as doces estrelas de carambolas, quadrados de mamão, corações de abóbora secando na peneira feita de taquara. Sobre a grande mesa, nos vidro ainda quentes, as compotas de goiabas, marmelos, laranjas da terra e limão cravo esperam a hora de descansar nas prateleiras da despensa. Um queijo, um beijo, marmelada e paixão – vida de cheiros agridoces entre as tampas e o pilão. Na réstia de alhos e cebolas, uma trança e um limão. Nas gamelas sobre a mesa, o verde das folhas do agrião. Um pano branco bordado com os dias da semana marca o tempo que não passa. E no calor dessa hora, na janela o sol espia e, se enfia no aconchego de um abraço entre cada beijo estalado, um biscoito "casado" e um sorriso de maria-mole. Água fria, descansada no gosto do barro da velha moringa, escorre entre os goles, doces goles do vermelho das romãs. Entre as cinzas do borralho, surge o gato Malmequer, que nada quer, a não ser dormir e sonhar odores. O tempo e suas escamas coloridas brilham no olho do boi, enquanto tudo gira num silêncio onde fermentam as saudades guardadas nas gavetas e nos armários. Lá no quintal, as galinhas ciscam o chão, descobrindo o segredo de germinar minhocas. E a roda d’água gira sem parar, gira os sonhos, gira a vida, gira o tempo de todos nós.


imagem: Roda d'água

Aquarela sobre papel

Luciah Lopez

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

QUANDO TUDO NÃO PASSA DE UMA TARDE GRIS




o homem troca de nome e permanece menino _____ brinca com o juízo dos mortos, rodopia as  palavras de vida e morte_____ mergulha em suas próprias águas afogando-se em seus pensamentos_____ ressurge amado qual anjo da anunciação ao dar significado ao romançario da tarde gris_____e levanta ereto, e disfarça a claudicante condição de bastardo ignóbil_____ se afasta da memória de todas as coisas se julga deus quando não passa de um menino.


imagem: google

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

PRECISÃO


 As minhas mãos nuas de chuva se escondem entre as ramagens. Os meus pés calçam flores que ficam pelo chão. Os meu olhos desviam olhares de dois lugares - céu e terra - e eu guardo o ouro que cavei nas minhas andanças de cavadora de terra. Nas minhas costas o peso da existência e o misterioso desenredar do inexpressivo. Aqui o meu grito povoou com precisão absoluta a vida irrestrita.


imagem: Série Flores
Aquarela sobre papel
Luciah Lopez