quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

OS PÁSSAROS


 

Ouça-me no "canto dos pássaros"

Tem um poema feito de solidão

Ouça-me...

Os pássaros cantam o que

O meu coração escreve

Enquanto sístole/diástole

Há vida dentro de mim...

Ouça-me no canto dos pássaros

Que voam em bandos

Desenhando um poema

Para cada verso meu.

Os pássaros cantam...

Ouça-me no canto dos pássaros.



imagem: Pássaros

Aquarela sobre papel Hahnemuhle

Luciah Lopez



terça-feira, 26 de janeiro de 2021

SINE NOMINE





...e as três feras caminhavam juntas
desenhando os nove círculos
enquanto os mortos atormentados
ajoelham-se diante dos portões...
..a inocência mora aqui?!
_____quero comprar três moedas de prata
e desenhar em cada uma delas
o olho cego que tudo vê.



imagem: Anônimo
Aquarela/lápis de cor /giz sobre papel
Luciah Lopez

 


domingo, 24 de janeiro de 2021

PANTOMIMA

 



absurdo é o riso que não consigo sorrir porque a fome devorou
e eu vim parar aqui na curva de um rio
sonhando dormir acordei e cortei os cabelos

não era hora não era o tempo das portas abertas
no desvão apenas trastes empilhados que as traças devoram

estantes e instantes mordem o meu pensamento
pra me lembrar dos livros e da ferida e das pontes e das praças
das pedras que eu juntei e coloquei no meu prato

não era hora não era o tempo das portas abertas
pras varandas e portões e ruas enlameadas a solícita companhia

caminhantes de outras eras como gatos famintos de agrados
lada à lado se esfacelam e riem um riso azedo de outridade
e se constroem e se costuram como mulambos esfarrapados

não era hora não era o tempo das portas abertas
porque ousei sonhar um poema possível nos muros
nos telhados nas aldeias nas ruas nas montanhas nas cidades
nos becos nas vielas nos canaviais na pele na carne viva na alma imortal
não era hora não era tempo
não era hora não era
não era hora não
não era hora
não era
não


PERJÚRIO

 


é meu corpo que flutua

são minhas asas insanas

é minha boca morrendo na sua

é eterno perjúrio

é dor que não arrefece

não viaja no escaler da saudade

não se cala, não adormece.

é o inverno tardio

na minha pele de primavera

são as horas suicidas

as mãos vazias

é a noite tecendo filigranas

enfeitando a orla dos meus olhos

consentindo o amor

no meu peito de ternura

e embriaguez.



quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

LONGEVIDADE


LONGEVIDADE

 Longos são os dias de escravidão e fogo guardados na minha memória porque ainda sou menina , bordando crivos na pele áspera do TEMPO. As minhas mãos resguardam a pedra de fogo - coração da natureza - e os meus lábios beijam os pergaminhos na iminência do verbo. Danço com as feiticeiras,  as sacerdotisas  e as deusas e tudo que profetizam ,faz vingar as sementes de mandrágora. Soam trovões em todos os céus e sinos de todas as catedrais,  todos os rios percorrem as entranhas da Terra  e os peixes acordam de sua profundeza abissal. As marés, as tempestades, os ventos e o olho do furacão. Os ventos lunares, as marés de sizígia, as escamas do dragão brilhando ao sol quando o dia não se rende à noite enclausurada. Desarvorado é o coração do homem diante dos dias nublados... Ouço o silêncio dos poemas dos poços sem fundo, das raízes, dos liames, dos pássaros sem ninho, dos ossos secos como flautas de vento, dos ouvidos surdos, das bocas enrugadas, dos casulos, das crisálida de seda e dos olhos que não adormecem...

... não adormecem nunca!

É este frio enovelado em sacrifícios, que busca guarida no meu coração. É este ponteiro que atropela o verso e incompreendido se põe a correr pelos meus corredores até o início da minha memória _____ anciã/mulher/menina e a solidão devastadora do existir.



imagem: Autorretrato

Grafite sobre papel

Luciah Lopez


UM BRINDE!

 vamos fazer um brinde?


21h21 do dia 21 do ano 21 do século 21

CONVERSANDO COM ALICE - 01



6:30 - o alarme do celular toca: " Tô no trabalho pensamento em você, tão desconcentrado só penso em te ver"  


Alice acorda de sobressalto e procura o celular embaixo do travesseiro. Dá um beijo na foto do João Bosco, que usa como protetor de tela - Bom dia, meu amor! Tô atrasada, hoje não da tempo de dar uma... Apressada corre pro banheiro, levando as roupas na mão. Liga o chuveiro e a água não esquenta.  

_ Pôrra! Essa merda queimou de novo! Esbravejando um pouco, Alice entra no banho rápido e gelado.

A porta do banheiro se abre e Claudete entra esfregando os olhos, abaixa a calcinha e senta no vaso.

Alice olha a amiga pelo espelho e reclama:

_ Ôrra, meu! Vê se não vai poluir o ambiente!

_Só um xixizinho básico, amiga, ontem eu sai com o pessoal do hospital. Bebemos todas. Nem sei como cheguei em casa.

_ Clau, você sabe que não pode beber que perde a linha rsrsrs, solta a franga. Quem foi a vítima dessa vez?

_ Ai amiga, deixa eu te contar...

_ Depois Clau, agora não dá. Tô atrasada.  Veste a roupa apressada, se olha no espelho enquanto passa o batom: Tô precisando fazer outra progressiva, mas cadê dinheiro?!

Bejim. Fui.

Alice desce os três lances de escada, saltando os degraus de dois em dois e logo está na rua.

_ Ô, merda! Ô São Pedro, garoa agora?! Pô meu, segura ai!

Corre até o ponto do ônibus, entra na estação tubo, vê o ônibus chegando, lê o letreiro: "Santa Cândida / Capão Raso" . Com o coração aos pulos entra no ônibus e seus olhos procuram por "ele". Logo o encontra, sentado no mesmo lugar. No penúltimo banco .

O ônibus esta super lotado, Alice vai se espremendo entre os passageiros e consegue chegar ao fundo do coletivo. Posiciona-se entre o penúltimo e o último banco, e, então baixa o olhar vagarosamente sobre o homem sentado e deixa o pensamento fluir - Como ele é lindo! Pena que nem me vê.  Alice respira fundo tentando sentir o perfume do homem. Olha detalhadamente os cabelos úmidos, observa o rosto barbeado, as mãos segurando a pasta de executivo, dessas bem caras, couro preto com detalhes em metal dourado. De repente o homem vira a cabeça, olha para cima direto nos olhos de Alice. Um olhar firme, penetrante. Parece ler os pensamentos dela. Sente o rosto queimar e um calor invade o seu corpo. Constrangida tenta desviar o olhar, mas não consegue. Está hipnotizada por aqueles olhos castanhos. Um mundo de situações se passam nestes rápidos segundo em que os dois se olham... "o perfume dele e, aqueles lábios se aproximando dos seus. Entreabre os lábios fecha os olhos imaginando o toque macio e úmido da língua quente roçando os seus lábios..."

O inesperado acontece: uma freada brusca interrompe o momento e o homem baixa a cabeça olhando para as mãos, e Alice desperta do sonho quase perde o equilíbrio e para não cair, solta a bolsa a tempo de se segurar na lateral do banco onde o homem está sentado. No empurra empurra que acontece dentro do coletivo, ela não percebe que o celular cai, e apressada, recolhe apenas a bolsa  mudando de lugar procura ficar próxima à porta de saída, pois a Estação Central Comendador Fontana é a próxima parada. O homem também se levanta e ao fazê-lo, percebe o celular junto ao seu pé. Instintivamente ele sabe que o celular é da moça que derrubou a bolsa, recolhe o aparelho para devolver. Procura a moça com os olhos, mas a vê saindo  apressada, já dentro do tubo. Lembra-se do olhar da moça e resolve guarda o celular, sabe que no dia seguinte poderá devolvê-lo.

Alice olha a Rua XV de Novembro e se descobre num mar de  guarda-chuvas coloridos,  vai caminhado com passos rápidos até a loja, onde trabalha como vendedora. Quando vai guardar suas coisas no armário, resolve ligar para Claudete avisar o sindico sobre o chuveiro queimado. Procura o celular dentro da bolsa e não o encontra.

_Puta que o pariu!! Perdi meu celular - vocifera em voz alta assustando as colegas que estão no vestiário. Tati, se aproxima e pergunta o que está acontecendo:

_ Que foi "guria"? Pra que tanto "cacarejo "logo cedo??

_ Que merda, Tati! Perdi meu celular e nem terminei de pagar. Puta que o pariu! Foi no ônibus, eu derrubei a bolsa e o celular caiu, só pode! Ô final de ano fuuudidooo!!!!

_ Bora trabalhar "guria", tem muita coisa nova pra repor na seção infantil. Depois a gente conversa sobre isso e vê o que dá fazer.

_Ôrra! Vou ter que comprar outro e meu cartão ta no mico. Quero ir ver meus pais no Natal e não posso gastar mais.

Alice, se olha no espelho antes de sair e novamente o corpo treme ao lembrar do homem que viu no ônibus. Como será o nome dele? Será que é casado?! Putz! Não olhei se ele usa aliança, mas amanhã eu dou uma boa olhada.

E com estes pensamentos , ela sai do vestiário dirigindo-se à seção infantil...



imagem: Lina Faria