quarta-feira, 26 de outubro de 2011

ÁGUAS VERMELHAS


ÁGUAS VERMELHAS


A tendência de tudo nesta vida é "passar", como passam as horas. Passam as chuvas, as nuvens, as estações, ondas no mar.Passam as carroças e seus cavalos magros e suarentos, os cachorros com seu olhar triste, as prostitutas velhas e cheirando a naftalina. A batina do padre furada pelas traças, tudo passa. A dor de barriga, o homem que vende bilhetes [olha a borboleta!], a mulher que pede esmolas, o irmão que vai embora, o amigo que se casa... A faculdade que termina, a briga que se acaba, o pão que amolece, a fruta que apodrece, a boca sem dentes, o sorriso sem graça. Tudo nesta vida é passageiro, assim como viajantes de um trem, passageiros de um avião, de um balão, de um sonho... Passam as risadas, a pele macia, as pétalas das rosas, o silêncio dos olhos, a fome da barriga, a sede das bocas. Até o seu amor por mim passou... Só não passam as águas vermelhas. Águas paridas em sofrimento, rasgando abrindo as entranhas da terra, vertendo em jorros, escorrendo, tingindo meus olhos deste vermelho sangue...


terça-feira, 25 de outubro de 2011

O COLAR DE PEDRA AZUL


O Colar de Pedra Azul


Nos tempo do casarão azul, para onde as crianças da minha família eram levadas no período das férias, dando sossegos aos pais e atormentado a avó; existiam lugares que para nós eram proibidos. O escritório de meu avô, o quarto de vestir onde minha avó guardava seus tesouros - seus baús, seus leques, seus chales de renda e seda, e, claro, a despensa! Ficava “pegadinho” à porta da cozinha – paraíso de todas as guloseimas da casa.

Nossos dias eram longos, acordávamos com o sol bem a tempo de ver a retirada do leite, a alimentação dos cavalos, carneiros, porcos e demais moradores do pátio da fazenda... Após o café reforçado, estávamos livres para brincar naquele paraíso tropical.
Eu, sendo ainda muito pequena não podia me afastar muito dos olhos de minha avó devido ao perigo de alguma cobra, ou do rio de corredeiras fortes e os bois. Alguns até “alongados”, o que os torna mais perigosos, segundo os peões da fazenda. Então eu ficava por perto e quando alguém se descuidava, eu via a chance de excursionar pelos lugares proibidos da casa. Meu avô sempre estava lendo em seu escritório ou na varanda, fumando seu narguilé, então restava o quarto principal - no alto da escada, porta sempre fechada – mistério!

Era um quarto amplo, arejado, com móveis austeros. Tudo muito limpo e arrumado, com cheiro de lavanda inglesa [eu acho] e o quarto de vestir insinuava-se cheio de prateleiras, com muitas caixas e os baús de todos os tamanhos. Não foi possível conter-me! Entrei e peguei um bauzinho de couro marrom com cantoneiras douradas [um tanto gastas], mas bonitas. Por sorte, não tinha chave - “Esta aberto”! Virei tudo em cima da cama.  Me sentei na cama e espalhei o tesouro de vovó, na colcha de crochê! Eram anéis de pedras grandes e pequenas, pedras coloridas, broches, fivelas para cabelos, alfinetes de gravata, os relógios de meu avô [um deles tinha uma tampinha!] cordões e intermináveis perolas perfeitas. E a coisa mais linda que meus olhinhos já tinham visto! Um colar de perolas trançadas e com um pingente de coração com uma pedra azul.

Foi amor à primeira vista! E ao primeiro susto! Minha avó entrou. Me olhou, eu ali, muda, no meio dos broches e anéis... Ela sentou-se em silêncio. Eu havia quebrado as regras da casa! Sabia que seria castigada, mas para minha surpresa, vovó começou a retirar suas coisas delicadamente e guardando-as no bauzinho foi contando a história de cada peça e o que significava para ela.

Quando chegou ao colar em minhas mãos, falou sobre a pedra azul, sobre como eram feitas as perolas,mostrou-me o trabalho delicado do ourives, nos engastes das pedras e delicadamente como sempre fazia tocou em meu queixo levantando meu olhar até o seu, falando-me: –“Meu amor, ainda é muito cedo para você usar estas coisas, mas um dia vou presentear todas as minhas netas com uma lembrança minha. Isto que você tem nas mãos, são apenas pedras bonitas, não se comparam ao meu tesouro maior – seu avô, meus filhos e meus netos e netas. Vocês são o verdadeiro tesouro.E as coisas verdadeiras moram no coração. O resto Mariame, são apenas pedras bonitas"...
Entendi o recado – nunca mais abri o baú...



para minha avó, que caminha pela minha memória.




segunda-feira, 24 de outubro de 2011

AS BORBOLETAS NÃO MORREM


As Borboletas Não Morrem

Minhas férias escolares sempre foram motivo de muita alegria - era a própria liberdade na fazenda dos meus avós - promessa de longos dias de aventura pelas matas, banhos de rio, cavalgadas pelos pastos com o vento no rosto. A noite, as histórias do meu avô.


Era o meu País de Faz de Contas. Onde tudo era possível, onde eu era a princesa soberana de todas as histórias - que mais eu poderia querer?!
Meu avô era mestre em contar histórias de lugares distantes, de um povo guerreiro, de princesas de olhos negros e pele de veludo - Vovô, os meus olhos não são escuros! - Ele respondia sorrindo -"Mariame, seus olhos tem a cor das areias, da dunas".


Essas histórias povoaram minha mente por  muitos anos e as histórias reais eu aprendi junto com meu avô. Com ele conheci o milagre da vida no nascimento de potros e bezerros, na transformação de flores em frutos, na maturação destes frutos e o surgimento da semente. E também a mão certeira da morte colhendo suas vítimas e o séquito alado  sobrevoando, a espera do banquete.

Tudo me foi passado de uma maneira tão doce quanto o mel que colhíamos dos favos e lambuzávamos nossos dedos aproveitando cada gota dessa dádiva de Deus. Ficávamos horas intermináveis deitados à sombra das pitangueiras ouvindo o baque surdo do monjolo e outras horas mais, olhando os peixes descansando por baixo das ninfeias em flor. Tudo em perfeita comunhão com o universo pulsante de insetos e pássaros que nos brindavam com seu canto melodioso.

Uma tarde, meu avô levou-me a um lugar secreto. Um olho d'água!! Uma lágrima da Mãe Terra, pronta para saciar nossa sede. A terra em volta da mina d'água, era úmida, coberta de bambus e taquaras formando uma sombra refrescante. Foi uma visão do paraíso descortinando-se aos meus olhos de criança. O chão coberto de borboletas de todas as cores, de todos os tamanhos. Elas pousavam na areia úmida, desenrolavam sua língua-tromba e sorviam água para depois voar e pousar mais além. Quando me aproximei, todas voaram.

Me senti num carrossel de anjos coloridos que esbarravam em mim, e eu, tentando pegá-las enquanto meu avô em gargalhadas dizia: "São fadas, faça o seu pedido". - Um  desejo nascido do coração de uma criança pode tudo. Então percebi algumas borboletas imóveis no chão - mortas! Não voavam mais - estavam mortas! Fiz o meu pedido.

Pedi para que as borboletas nunca mais morressem, e fossem voando para o céu e assim ficassem aos anjos em nossos sonhos. Talvez, hoje, meu avô esteja com alguma borboleta pousada em sua mão, como ele fazia..."veja Mariame, ela veio me dar bom dia".


para meu avô - vivo na minha memória.

domingo, 23 de outubro de 2011

LIBERDADE


LIBERDADE


Às vezes penso que ser livre nos dias de hoje, me mantém mais presa que antes. O preço da liberdade é salgado e doloroso.
Afinal, a liberdade é uma bandeira que sempre desejamos levantar. Liberdade é vento, ventania e isso é divinal!
Ir e vir sem ter porque, sem ser questionado nem questionar, é o sonho azul de cada um. Era o meu sonho também. Eu imaginava assim...
Acordar, ver a “cara” do dia, respirar, tomar banho, comer e vestir meu belo jeans desbotado, tênis e camiseta e arrumar os cabelos... ah, meus cabelos tão longos e cacheados, soltos ao vento em protesto contra tudo que era liso e simétrico emolduravam um puro olhar. Um inocente olhar...
Meu perfume! Esse ainda é o mesmo, o meu cheiro, marca registrada -"Tamango", questão de gosto, pois existem outros.
Depois, ouvir música. De Jimmy Cliff e Bob Marley a Gilberto e Caetano, transitoriedades urbanas!
A porta se abre! Uma voz, um andar, um olhar incisivo...
E eu ali sentada, calada “bolada”, enquanto meu avô lia versículos do Alcorão - e eu pensando – “ que merda é essa” ?! Era a liberdade de poder pensar e pensar que mais tarde viria o padre rezar o terço e eu tinha que “comer” a Hóstia. Que conflito! Deus ou Allah?! Biquini ou hijab?!
Que merda é essa?! Eu não sabia o que pensar, pode?!
Hoje eu posso falar e pensar tudo que quiser, usar calça jeans rasgada, cabelos com luzes ou mechas, ir e vir, ponderar e decidir se vou dormir ou teclar mas, e daí?! O que mudou? Nada. Nada muda, é tudo sempre tão igual, meu avô ainda lê o Alcorão, crianças ainda são violentadas, ainda as guerras derrama sangue inocente,novas prisões são levantadas bem na nossa cara. Então a liberdade é só o poder de pensar “que merda”?! Mesmo assim, ainda dói porque tem que saber quando pensar e em quem pensar, senão, “ta fudido”! E como sou livre, posso gozar a sensação de dizer isso de boca cheia, sem ter os olhos de minha avó me fitando ou dedos em riste me dizendo - "Isso não pode". Mas ser livre para quê? De que me vale essa pseudo liberdade se estou presa a outras coisas, tantas regras, pode não pode! E o pior, é que estou presa pelo coração e essa é a pior prisão que existe, pois você nem me vê!
Nada mudou... saudades da minha avó sempre... véus que não caem...palavras que não são ditas...
Ah, só meus cabelos eu cortei!




sábado, 22 de outubro de 2011

TANATOS



O que eu vi, eu não sei se estava lá. Eu apenas distingui aquele escorrer vermelho, viscoso e frio num filete d’água diluindo-se no ladrilho branco até sumir pelo ralo levando o meu olhar e o meu silêncio. A vida restringia-se à larvas brancas contorcendo-se em desespero, boiando na água fria, deixando à vista apenas a cabeça escura e a fome voraz. O que eu conhecia por viver e estar viva disponibilizava somente um leve comentário sobre aquilo tudo. Não havia maneira de exteriorizar um sentimento ou mesmo um espanto – então me calei! Deixei o cheiro acre revelar-me a ausência purificada da Vida e o rasgar em tiras que, expondo a planura branca dos ossos nos dentes da serra e no fio da rugina me trouxe a presença da morte. Era uma questão de tempo. Mas o tempo é tão fragmentado que se dissipa ao menor disparo, transformando tudo, até o silêncio frio e branco da morgue e o revelar de fatos e "causa mortis". Nunca consegui entender o que existe de fato por trás daquelas portas e das fotos tiradas sem o menor pudor nem sinal de vida. Associando uma estranha presença de carne e sangue e restos de uma podridão onde as larvas fazem sua ceia, senti o quanto nos inquietamos diante da morte e do morrer. E ainda sem argumentações e acreditando na fragilidade da matéria, questionei-me sobre a projeção do espírito e esta lamurienta escuridão que nos afasta da compreensão e do esplendor do saber. O que seria apenas uma tarefa fácil, tornou-se uma questão crucial – a fragilidade e vulgaridade da matéria contrastando com a verdadeira existência daquilo que chamamos “alma”, e que, na realidade é uma imensa nebulosa de vibrações e significados que devemos aprender a ler enquanto matéria. Dando ainda uma última olhada naquele amontoado de proteínas e aminoácidos pulverizados deixei aquela sala fria e voltei para a luz do sol.



Ad Infinitum...

NOIVAS DO CAFEZAL





NOIVAS DO CAFEZAL


Debaixo de um sol de 40°graus, elas suavam os seus corpos cobertos, deixando à mostra apenas as mãos calejadas. Os rostos eram protegidos pelo chapéu e pelo lenço de pano branco. Nos pés, as pesadas botinas encarquilhadas, protegiam-nos contra os espinhos e gravetos das leiras no meio do cafezal.

Elas sempre estavam sorrindo e cantando alguma música das paradas de sucesso da época. Na maioria das vezes, música sertaneja e hinos (mãezinha do céu...), sei apenas que cantavam enquanto faziam a derriça do café. Isso atenuava o trabalho cansativo de segurar as ramas cobertas de frutos vermelhos, e com as mãos puxar com força para desprender os frutos do galho, na enorme peneira...

Isso era feito com todo carinho, retirando apenas os frutos maduros, e quando a peneira estava com uma quantidade suficiente, elas sacudiam de uma maneira cadenciada e os frutos subiam junto com as folhas e eram separados, como que por magia ainda no ar, caindo novamente na peneira enquanto  as folhas caiam no chão...

Durante toda a manhã, até quase onze horas, era assim, a cantoria, a derriça, o abanar e as folhas verdes pelo chão... De repente elas olhavam a posição do sol e a própria sombra projetada no chão coberto de folhas, uma a uma, deixavam suas peneiras junto aos pés de café, reuniam-se na sombra de alguma árvore próxima e começavam a preparar o almoço - requentado. Faziam um fogão improvisado com duas pedras previamente separadas para essa finalidade, chamavam as crianças para buscar gravetos e acendiam o fogo. A comida estava guardada em pequenos "caldeirõezinhos" com tampa, e embrulhados num pano de saco branco e alvejado, sempre  bordado com flores numa das pontas...

Enquanto a comida era aquecida no fogão improvisado, elas colhiam a "mistura", ali mesmo, no cafezal. Eram pepinos e maxixes espinhentos que se alastravam pelas leiras. Colhiam maços de  almeirão do mato, serralhas e beldroegas de folhas gordas e verdes... Tudo era lavado com água trazida nas moringas de barro que ficavam guardadas junto ao tronco de um pé de café para manter a "frescura", e depois de limpas, eram temperadas com sal, azeite e limão numa bacia de alumínio. Era uma salada coletiva. Todas serviam-se da mesma.

Nos caldeirõezinhos - arroz, feijão, farinha e um pedaço frango de capoeira, charque ou carne de porco, dessas que são fritas em pedaços grandes e guardas na própria banha numa lata bem tampada. Sempre tinha um ovo frito ou cozido, com sua gema amarelo forte, diferente até no gosto, se comparados aos ovos que eu comia lá em minha casa...

A sobremesa sempre era melão caipira, melancia, manga, araticum ou mamão, frutas que eram 'praga' no cafezal. Aquilo tudo para mim era uma festa, um manjar dos deuses. Eu comia sem pestanejar. E enquanto fazia a minha refeição, sentada à sombra, eu olhava para elas. Via os seus rostos - algumas eram jovens, outras eram mais velhas, mas todas me tão pareciam felizes em sua simplicidade.


Eu sentia a amizade entre elas, o carinho umas com as outras, sempre dividindo o pouco que tinham... Nas minhas férias eu sempre estava por lá, acompanhando meu pai e aprendendo com ele o amor e o respeito que devemos ter pelas pessoas que trabalham a terra. Eu era entregue aos cuidados de dona Olinda, que sempre preparava um "caldeirãozinho" para mim, tendo o cuidado de colocar mais feijão do que arroz e já sabendo da minha preferência ela fazia isso de 'coração alegre' - e sempre dizia: mas "seo" Moisés, a menina vai almoçar lá no eito??  E o meu pai dava a sua costumeira risada e finalizava: capricha no feijão!


Depois do almoço, as crianças voltavam às brincadeiras, e elas, ao cabo do rastelo e as ramas dos cafeeiros. Isso varava a tarde e a cantoria das pombas, dos bem-te-vis, dos anus podia ser ouvida. E ao longe o mugido triste dos nelores dava notas melancólicas anunciando o fim do dia. Em silêncio elas enxugavam o rosto e descansavam suas peneiras e seus rastelos, lavavam as mãos e chamavam novamente as crianças e  dividiam entre nós um pedaço de bolo de fubá ou pão doce e uma caneca de caldo de cana, trazidos de suas casas. Enquanto comíamos o lanche, elas recolhiam suas coisas e seguiam em fila, pelo meio do cafezal indo para suas casas, alegres por mais um dia de trabalho deixando para trás aqueles pés de café, gigantes para minha pequenez.

Quando eu me lembro da primeira vez que meu pai me mostrou um pé de café florido de cima a baixo, imaginei uma noiva toda de branco, coberta de flores perfumadas onde as abelhas vem buscar o seu alimento... Ainda hoje não conheço nada mais belo que um cafezal em flor, embalado pela cantoria das mulheres e suas mãos carinhosas, mas aquele cafezal onde brinquei tantas tardes existe somente nas minhas lembranças, assim como o gosto doce de seus frutos estarão comigo para sempre...


para dona Olinda e seu Otávio presos na minha memória

CIO



CIO


Em noite de lua cheia, ela sentia uma comichão nas “partes” e um calorão que lhe subia e subia até entontecer o juízo. E era um calor danado, mais quente que tição em brasa, muito mais quente que o “bafo” do Cão.

Ela soltava os cabelos enovelados, segurava a saia rodada, feita de chita florida, e , saia em disparada, com os seios balançando soltos dentro da blusinha branca.Corria, feito louca. Corria até que lhe faltasse o ar. Então caía, com o corpo retesado, cravejado de gotas de suor e a boca espumando uma saliva espessa e branca. Rolava pelo chão e urrava feito bicho, feito loba faminta - arranhava as coxas e mordia os lábios.

A lua meio escondida entre as nuvens, olhava assustada, aquele bicho lá embaixo se espojando nas folhas secas, babando e gemendo, se contorcendo no chão.
Às vezes, o vento trazia refrigério para aquele corpo em chamas e benzia aqueles pés afoitos, que se enterravam na areia úmida das barrancas do rio onde ela se refugiava.

Era uma loba. Uma loba faminta de carne. De sexo. Faminta de vida pulsando dentro do seu corpo e alimentando-a com estocadas profundas. Só isso a deixava saciada. Fazia com que ela voltasse a ser dócil, quase angelical. Mas a rezadeira havia feito um encanto.Trouxe um “cozido de ervas” e com isso foi feito um 'esfregaço' em seu corpo para afastar os demônios que a possuíam. E colocou em seu pescoço, o colar de ossos de pássaros e sementes de cheiro; para manter afastados os desejos da luxúria. De nada adiantavam as poções e patuás da velha bruxa, quando a noite chegava quente, ela sentia o  sangue ferver.

E se largava pelo campo e corria solta, rasgando as roupas  buscava o corpo do seu homem para acalmar a “comichão” e quando não o encontrava, ficava assim, feito um bicho se consumindo na fome da própria carne até se sentir aliviada e adormecer ali, no meio do mato sobre as folhas secas onde somente o vento vinha rezar os seus pés descalços.




O MORTO


O MORTO


No asfalto quente e rachado a refração dança diante dos olhos de quem se atreve a enfrentar as crateras fumegantes espalhadas pelo chão.Tudo é silêncio. Uma pasmaceira de morte. Nem os pássaros cantam. Nem as flores se abrem. Apenas um sino quebra a modorra do dia. Alguém morreu!
Lá na capela mortuária tem um corpo rijo deitado dentro de um caixão. Esta coberto com flores de tecido embebidas em essência de lavanda para disfarçar o cheiro da morte. Não sei se a minha curiosidade ou solidariedade me fez enfrentar a subida íngreme até a cidade dos mortos. Uma vez lá, olhei detalhadamente o rosto do morto. Parecia feito de cera e os olhos meio abertos lembravam gelatina. Os lábios estavam colados mantendo-se unidos e repuxados deixando um semi-riso na boca seca.
A barba feita às pressas deixou um caminho de pelos para lá e para cá. Mas o nariz!... Infelizmente deixaram as pontas de algodão aparecendo e avolumando as abas do nariz aquilino do falecido. Alguns pelinhos que faziam às vezes de antenas de insetos de tão grandes que eram.
Alguém devia ter tido a misericórdia de cortá-los. É lastimável chegar aos portões do Paraíso e ficar frente a frente com São Pedro tendo aqueles “pelinhos” saindo das narinas entupidas com algodão.
Mas o morto está morto! Não pode protestar. Não pode rir das piadas sem graça ou mesmo ser solícito com a viúva e seu choro de gato asmático.

Não pode descruzar os dedos, soltar as mãos e espantar aquela mosca zombeteira que passeia solene pelas bochechas amarelecidas parando vez ou outra para esfregar as patas. Todos veem a mosca, mas ninguém faz nenhum gesto para espantá-la. Ficam apenas cochichando entre uma olhada e outra para a cara do morto.
Uns dizem que ele, o morto, era “crente” e não poderia estar com velas acesas nos quatro cantos do caixão nem o enorme crucifixo norteando a sua passagem, mas a viúva não diz nada e continua com seu choro fino enquanto na copa as mulheres preparam o lanche para a “virada da noite”.
De repente aquele cheiro de café fresco que mais parece chá, de tão transparente que é[fraco e doce] e o incontestável cheiro de mortadela com pão. Uma criança derruba o pão. Senta-se no chão de ladrilhos vermelhos e respingados de cera de vela, apanha o pão e a mortadela e come tranquilamente sob o olhar indiferente da mãe. De onde estou fico pensando - Filho de pobre é imune a quaisquer micróbios de capela mortuária! – rsrs.
Chegam numa perua Rural azul e branca o Pastor e os obreiros para resgatar a alma do “irmão desviado” e garantir o seu lugar no céu. As “irmãs” aglomeram-se ao redor da viúva e começam a árdua tarefa de fazê-la parar de chorar e confirmar que o morto pertencia à irmandade para que se pudessem retirar as velas e o crucifixo e salvar a alma do pobre das labaredas do inferno.
Ela, a viúva deveria acertar os dízimos devidos à igreja garantindo com isso a entrada segura do morto. A mãe do morto que assistia tudo silenciosamente levanta-se calmamente e chega até o pastor, abre sua Bíblia e retira um papel encardido e dobradinho e mostra ao pastor dizendo que aquela era a passagem do filho dela para o reino dos céus - certidão de batismo na igreja católica.
Fez-se um silencio total onde se podia ouvir o zumbido da mosca. O pastor ainda tentou argumentar, mas a entrada do padre o deixa desarmado. Ficam frente a frente padre e pastor. Ninguém ousa dizer nada só uma criança chora pedindo mais “mortandela”.
O padre de batina preta aproxima-se do morto, abre a sua maletinha retira a Bíblia e o hissope e começa aspergir água benta sobre o morto virando-se repentinamente atinge o rosto do pastor e algumas obreiras que estavam perto. –“Ô pastor Eládio, mil perdões, mas me parece que o Todo Poderoso pressentiu a sua “secura” e resolveu dar de beber a quem tem sede”.
Olhando lá de cima, da varanda da capela mortuária pude ver que a lanterna traseira da velha Rural estava queimada enquanto ela descia a rua sacolejando nas crateras do asfalto precário. A noite se arrastou entre risos abafados, piadas sem graça, choros, cheiro de velas, cheiro café e “mortandela”. E na manhã seguinte o morto foi enterrado com os dedos cruzados sobre o peito e um risinho diferente nos lábios.


Ad Infinitum