sábado, 25 de agosto de 2018

MIGRAÇÕES





o dia começa
meu pai está aqui
a vida e a morte andam juntas
feito a ferida e a casca
 a repulsa e o nojo são os cavalos dessa loucura.
cavalgando a poesia na pressa do existir
me acostumei ao suor e ao fel 
como as anêmonas e os peixes à solidão abissal.
vejo o meu sangue no espelho quebrado
 e os meus ancestrais gritam 
em cada glóbulo e em cada hemácia recém nascida
 um pouco da tortura dos corvos na carne abjeta.
sei que não sou de lugar algum
a raiz e nem a flor
assim como a abelha que faz veneno e mel
sabe a razão do seu breve existir
ou mesmo conta os dias em cada pôr do sol
ou a sanha do tubarão entorpecido
é tormento praquele que será o seu alimento.
jamais voltarei a olhar àqueles olhos de adeus
porque cada um sabe a urgência dos seus passos 
os caminhos de ditadura eterna são o interior da serpente
ossos vísceras e vértebras 
regem a peçonha na malemolência da língua.
meu pai está aqui
segura a minha mão e
me conduz pela sala
pelos quartos
sobre os livros empoeirados e mofos
pelas engrenagens do velho relógio
pelos quadros antigos 
pelo quintal e jardim.
entre espinhos sombras e a escuridão das palavras rotas
todos os meus medos uivaram
desatrelando a velha canga 
livramento do espinhaço sob o peso das asas molhadas.
é quase noite na inércia dos pensamentos
meu pai segue ao meu lado
é preciso catalogar as misérias 
cortar do corpo os brotos e figos podres
olhos de peixe e calosidades
e indagar pelos cachorros perdidos e sem nomes
dar-lhes nomes e água para beber.
quem sabe isso os faça voltar a um estado de felicidade
quando as chuvas retornarem molhando a boca da terra.
gatos e cachorros bodes e cabras
homens e meninos sem nome caminham lado a lado.
em sua cegueira são como aves migratórias
que perderam a rota voando em círculos
tudo passa por mim como miragens.
ilusórias são as horas os dias os meses os anos
a resposta é dissolvida e desaparece na memória
eu não me importaria tanto com a dor
não fossem esses pássaros famintos voando ao redor
com seus olhos de rubi e seus bicos de jade.
meu pai me perguntou: qual o seu nome? 
jamais pude responder
mesmo raspando a minha pele com uma faca
nunca descobri o meu nome
isso dói demais por me sentir como animal selvagem
acuado
farejando no ar a umidade de uma chuva vindoura
anunciada em nuvens escuras.
aquela presença não decodificada
se avoluma em maré sanguínea e engole a lua e o sol
e todas as notas daquela canção
fazem silêncio agora e o céu escuro 
é denso útero de precárias tiranias
meu pai solta a minha mão
e eu experimento violenta e ofensiva tristeza
de estar só.
tive mil vidas.
terei mil vidas.
e a substância adocicada que escorre dos meus poros
é o avesso de cada lágrima que não chorei.

L.Lopez

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imagem: Odd Nerdrun

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