sábado, 22 de outubro de 2011

NOIVAS DO CAFEZAL





NOIVAS DO CAFEZAL


Debaixo de um sol de 40°graus, elas suavam os seus corpos cobertos, deixando à mostra apenas as mãos calejadas. Os rostos eram protegidos pelo chapéu e pelo lenço de pano branco. Nos pés, as pesadas botinas encarquilhadas, protegiam-nos contra os espinhos e gravetos das leiras no meio do cafezal.

Elas sempre estavam sorrindo e cantando alguma música das paradas de sucesso da época. Na maioria das vezes, música sertaneja e hinos (mãezinha do céu...), sei apenas que cantavam enquanto faziam a derriça do café. Isso atenuava o trabalho cansativo de segurar as ramas cobertas de frutos vermelhos, e com as mãos puxar com força para desprender os frutos do galho, na enorme peneira...

Isso era feito com todo carinho, retirando apenas os frutos maduros, e quando a peneira estava com uma quantidade suficiente, elas sacudiam de uma maneira cadenciada e os frutos subiam junto com as folhas e eram separados, como que por magia ainda no ar, caindo novamente na peneira enquanto  as folhas caiam no chão...

Durante toda a manhã, até quase onze horas, era assim, a cantoria, a derriça, o abanar e as folhas verdes pelo chão... De repente elas olhavam a posição do sol e a própria sombra projetada no chão coberto de folhas, uma a uma, deixavam suas peneiras junto aos pés de café, reuniam-se na sombra de alguma árvore próxima e começavam a preparar o almoço - requentado. Faziam um fogão improvisado com duas pedras previamente separadas para essa finalidade, chamavam as crianças para buscar gravetos e acendiam o fogo. A comida estava guardada em pequenos "caldeirõezinhos" com tampa, e embrulhados num pano de saco branco e alvejado, sempre  bordado com flores numa das pontas...

Enquanto a comida era aquecida no fogão improvisado, elas colhiam a "mistura", ali mesmo, no cafezal. Eram pepinos e maxixes espinhentos que se alastravam pelas leiras. Colhiam maços de  almeirão do mato, serralhas e beldroegas de folhas gordas e verdes... Tudo era lavado com água trazida nas moringas de barro que ficavam guardadas junto ao tronco de um pé de café para manter a "frescura", e depois de limpas, eram temperadas com sal, azeite e limão numa bacia de alumínio. Era uma salada coletiva. Todas serviam-se da mesma.

Nos caldeirõezinhos - arroz, feijão, farinha e um pedaço frango de capoeira, charque ou carne de porco, dessas que são fritas em pedaços grandes e guardas na própria banha numa lata bem tampada. Sempre tinha um ovo frito ou cozido, com sua gema amarelo forte, diferente até no gosto, se comparados aos ovos que eu comia lá em minha casa...

A sobremesa sempre era melão caipira, melancia, manga, araticum ou mamão, frutas que eram 'praga' no cafezal. Aquilo tudo para mim era uma festa, um manjar dos deuses. Eu comia sem pestanejar. E enquanto fazia a minha refeição, sentada à sombra, eu olhava para elas. Via os seus rostos - algumas eram jovens, outras eram mais velhas, mas todas me tão pareciam felizes em sua simplicidade.


Eu sentia a amizade entre elas, o carinho umas com as outras, sempre dividindo o pouco que tinham... Nas minhas férias eu sempre estava por lá, acompanhando meu pai e aprendendo com ele o amor e o respeito que devemos ter pelas pessoas que trabalham a terra. Eu era entregue aos cuidados de dona Olinda, que sempre preparava um "caldeirãozinho" para mim, tendo o cuidado de colocar mais feijão do que arroz e já sabendo da minha preferência ela fazia isso de 'coração alegre' - e sempre dizia: mas "seo" Moisés, a menina vai almoçar lá no eito??  E o meu pai dava a sua costumeira risada e finalizava: capricha no feijão!


Depois do almoço, as crianças voltavam às brincadeiras, e elas, ao cabo do rastelo e as ramas dos cafeeiros. Isso varava a tarde e a cantoria das pombas, dos bem-te-vis, dos anus podia ser ouvida. E ao longe o mugido triste dos nelores dava notas melancólicas anunciando o fim do dia. Em silêncio elas enxugavam o rosto e descansavam suas peneiras e seus rastelos, lavavam as mãos e chamavam novamente as crianças e  dividiam entre nós um pedaço de bolo de fubá ou pão doce e uma caneca de caldo de cana, trazidos de suas casas. Enquanto comíamos o lanche, elas recolhiam suas coisas e seguiam em fila, pelo meio do cafezal indo para suas casas, alegres por mais um dia de trabalho deixando para trás aqueles pés de café, gigantes para minha pequenez.

Quando eu me lembro da primeira vez que meu pai me mostrou um pé de café florido de cima a baixo, imaginei uma noiva toda de branco, coberta de flores perfumadas onde as abelhas vem buscar o seu alimento... Ainda hoje não conheço nada mais belo que um cafezal em flor, embalado pela cantoria das mulheres e suas mãos carinhosas, mas aquele cafezal onde brinquei tantas tardes existe somente nas minhas lembranças, assim como o gosto doce de seus frutos estarão comigo para sempre...


para dona Olinda e seu Otávio presos na minha memória

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