sábado, 22 de outubro de 2011

O MORTO


O MORTO


No asfalto quente e rachado a refração dança diante dos olhos de quem se atreve a enfrentar as crateras fumegantes espalhadas pelo chão.Tudo é silêncio. Uma pasmaceira de morte. Nem os pássaros cantam. Nem as flores se abrem. Apenas um sino quebra a modorra do dia. Alguém morreu!
Lá na capela mortuária tem um corpo rijo deitado dentro de um caixão. Esta coberto com flores de tecido embebidas em essência de lavanda para disfarçar o cheiro da morte. Não sei se a minha curiosidade ou solidariedade me fez enfrentar a subida íngreme até a cidade dos mortos. Uma vez lá, olhei detalhadamente o rosto do morto. Parecia feito de cera e os olhos meio abertos lembravam gelatina. Os lábios estavam colados mantendo-se unidos e repuxados deixando um semi-riso na boca seca.
A barba feita às pressas deixou um caminho de pelos para lá e para cá. Mas o nariz!... Infelizmente deixaram as pontas de algodão aparecendo e avolumando as abas do nariz aquilino do falecido. Alguns pelinhos que faziam às vezes de antenas de insetos de tão grandes que eram.
Alguém devia ter tido a misericórdia de cortá-los. É lastimável chegar aos portões do Paraíso e ficar frente a frente com São Pedro tendo aqueles “pelinhos” saindo das narinas entupidas com algodão.
Mas o morto está morto! Não pode protestar. Não pode rir das piadas sem graça ou mesmo ser solícito com a viúva e seu choro de gato asmático.

Não pode descruzar os dedos, soltar as mãos e espantar aquela mosca zombeteira que passeia solene pelas bochechas amarelecidas parando vez ou outra para esfregar as patas. Todos veem a mosca, mas ninguém faz nenhum gesto para espantá-la. Ficam apenas cochichando entre uma olhada e outra para a cara do morto.
Uns dizem que ele, o morto, era “crente” e não poderia estar com velas acesas nos quatro cantos do caixão nem o enorme crucifixo norteando a sua passagem, mas a viúva não diz nada e continua com seu choro fino enquanto na copa as mulheres preparam o lanche para a “virada da noite”.
De repente aquele cheiro de café fresco que mais parece chá, de tão transparente que é[fraco e doce] e o incontestável cheiro de mortadela com pão. Uma criança derruba o pão. Senta-se no chão de ladrilhos vermelhos e respingados de cera de vela, apanha o pão e a mortadela e come tranquilamente sob o olhar indiferente da mãe. De onde estou fico pensando - Filho de pobre é imune a quaisquer micróbios de capela mortuária! – rsrs.
Chegam numa perua Rural azul e branca o Pastor e os obreiros para resgatar a alma do “irmão desviado” e garantir o seu lugar no céu. As “irmãs” aglomeram-se ao redor da viúva e começam a árdua tarefa de fazê-la parar de chorar e confirmar que o morto pertencia à irmandade para que se pudessem retirar as velas e o crucifixo e salvar a alma do pobre das labaredas do inferno.
Ela, a viúva deveria acertar os dízimos devidos à igreja garantindo com isso a entrada segura do morto. A mãe do morto que assistia tudo silenciosamente levanta-se calmamente e chega até o pastor, abre sua Bíblia e retira um papel encardido e dobradinho e mostra ao pastor dizendo que aquela era a passagem do filho dela para o reino dos céus - certidão de batismo na igreja católica.
Fez-se um silencio total onde se podia ouvir o zumbido da mosca. O pastor ainda tentou argumentar, mas a entrada do padre o deixa desarmado. Ficam frente a frente padre e pastor. Ninguém ousa dizer nada só uma criança chora pedindo mais “mortandela”.
O padre de batina preta aproxima-se do morto, abre a sua maletinha retira a Bíblia e o hissope e começa aspergir água benta sobre o morto virando-se repentinamente atinge o rosto do pastor e algumas obreiras que estavam perto. –“Ô pastor Eládio, mil perdões, mas me parece que o Todo Poderoso pressentiu a sua “secura” e resolveu dar de beber a quem tem sede”.
Olhando lá de cima, da varanda da capela mortuária pude ver que a lanterna traseira da velha Rural estava queimada enquanto ela descia a rua sacolejando nas crateras do asfalto precário. A noite se arrastou entre risos abafados, piadas sem graça, choros, cheiro de velas, cheiro café e “mortandela”. E na manhã seguinte o morto foi enterrado com os dedos cruzados sobre o peito e um risinho diferente nos lábios.


Ad Infinitum


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